quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Toda pessoa soa ou o canto enquanto encrenca filosófica

Desde muito cedo me perco facilmente em questoes, digamos, filosóficas. Lembro-me bem de que com 5 ou 6 anos me pegava por muito tempo pensando “Tá. Mas se Deus criou o mundo do nada, o que havia antes? Como era esse nada? Que que Deus ficava fazendo lá (no nada) antes de criar um mundo? Aliás, o que existia antes de Deus? Alguém criou Deus? Se alguém criou Deus, cade ele agora?...” e esse tipo de coisa. Essa é uma característica que nunca me abandonou e nem deu sinal de que pretende ir mas naos sei até que ponto é uma característica tao individual. Certamente, todo mundo se perde de vez em quando nessas perguntas mas muitas reacoes das pessoas que conviveram comigo nesses 26 anos me fizeram ter a idéia de que talvez eu dedique mais tempo a essas questoes que o “normal”. Bem, fato é que se acaso eu tivesse reais interesses em acabar com isso provavelmente teria cometido um grave erro em escolher trabalhar com música pois (pode ser apenas minha visao de quem não conhece direito as outras áreas) essa é uma área onde vc pode viajar grande numa série de perguntas que puxam outras, que puxam outras, que puxam...

Dentro das questoes relacionadas à música que me fazem ficar viajando um bocado, uma das maiores é a voz e sua relacao com a música e isso há, pelo menos, uns 5 anos atrás quando por uma soma de vários fatores, apesar de nao me considerar ainda cantor, comecei a dar aulas de canto. “Mas como assim ´o canto´? O que há de polêmico em cantar?”.Bom, pode parecer que estou fugindo do assunto mas siga meu raciocínio:

A música é um fenomeno que se manifestará e manifesta em todas (eu disse todas!) as comunidades de humanos que se tem notícia nesse planeta. É bem provável que as raízes das práticas musicais tenham início entre outros hominídeos anteriores ao próprio hommo sapiens sapiens mas não se pode precisar qual. O fato é que todas as comunidades humanas desde os esquimós, passando por turcos, índios, chineses, até as comunidades urbanas do mundo todo possuem algo a que podemos chamar música e isso desde que se tem notícia de que humanos ocupam esse planeta. Isso já é algo que me faz parar pra pensar por muito tempo, afinal, se a música está em quaquer lugar onde há humanos, estamos muito próximos de dizer que ela é “natural”, que ela é essencial para que a espécie humana se mantenha no planeta, do contrário alguma comunidade de humanos poderia viver sem ela. Ou seja, há algo em comum entre respirar, comer, defecar, crescer e fazer/consumir música, afinal, são coisas que aparecerao onde quer que o humano esteja, mesmo considerando que não são coisas assim tao similares.

A partir desse ponto da linha de raciocínio pode-se ir para muitos lados: podemos ir lá na biologia discutir com Darwin o papel da música na adaptacao da raca humana a esse planeta (como aqui), podemos ir pro lado da antropologia pra discutir que apesar de a música ser natural para o humano, o tipo de música e o modo que será consumida não é (!) e que a cultura se encarregará de determinar isso (como aqui), pro lado da estética, pro lado das questoes de gênero... mas para me direcionar pro assunto que propus lá em cima quero chamar um outro dado: A música está presente sim em todos os povos que se tem notícia e existem milhoes e milhoes de tipos de instrumentos musicais por esse mundao mas apenas um está presente em absolutamente todos os povos: a voz. Em outras palavras, a música cantada é algo que está presente em todas as culturas enquanto a música “instrumental” não. Alguém pode argumetar que isso acontece porque a voz foi provavelmente o primeiro instrumento musical utilizado porque vem contigo desde que se nasce, e faz sentido, mas por que ainda hoje com tantos instrumentos à disposicao e tantas possibilidades de se fazer música ainda há tanta resistência à chamada musica instrumental (sem voz)? Aliás, porque a simples presenca de um instrumento é capaz de gerar essa diferenciacao que é tao importante em música (cancoes e música instrumental)? Ou seja, tomando emprestado a questao levantada aqui por Rafael José de Menezes (o etnomusicólogo que eu quero ser quando crescer, digamos, simplesmente), o que será, enfim, cantar que “tocar” não é?

Certamente alguém aí se adiantou em responder “ora, a voz tem a vantagem de podermos colocar letras, palavras que expressam sentimentos e tal...”. OK, não deixa de ser algo a se considerar, mas por que será entao que a música estadounidense é tao consumida ao longo do planeta mesmo entre aqueles que não falam inglês? “Por que o imperialismo norte americano impôs”, alguém gritou aí no fundo, ora entao porque a indústria fonográfica de lá não investiu em sua música instrumental, já que o pessoal não ia entender a letra mesmo? Não seria mais fácil pular a barreira da língua? O que havia na cancao estadounidense a favor da tal “investida imperialista americana” que não havia em sua música instrumental?

O fato é que não é necessário música para passar uma mensagem verbal. Para isso a gente tem a fala ou mesmo a escrita, do contrário, escutaríamos música até mesmo na padaria quando alguém cantasse para o atendente “me vê quatro paes, por favor”. Ou seja, não foi a necessidade de se comunicar (verbalmente) que levou algum hominídeo, há alguns milhoes de anos, a vibrar suas cordas vocais num padrao diferenciado daquele que ele usava pra “falar” (todos concordam aí que a voz falada e a cantada são distintas?) e, muito menos, que mantendo esse mesmo padrao de vibracao (a voz cantada) passasse a mudar suscessivamente (e num curtissimo espaco de tempo) entre sons mais graves e mais agudos criando assim melodias. Por outro lado, há que se considerar que não existe um abismo entre o canto e a fala, ainda que saibamos indicar com conviccao se alguém está cantando ou falando. Para nós que falamos português (como eu “presumo” que seja o caso do querido leitor), a distancia entre canto e fala provavelmente é maior que para os chineses ou grande parte das línguas de raiz bantu da África, por exemplo, onde um mesmo fonema pode significar coisas totalmente opostas dependendo se são ditos na regiao mais aguda ou mais grave da voz (as chamadas línguas tonais). Há comunidades africanas em que a palavra “sim” e a palavra “não” são constituidas exatamente pelo mesmo fonema variando apenas a “nota” em que é dita, por exemplo. Nem por isso podemos dizer que as “notas” da voz não influenciam em nossa língua (nem em qualquer outra), afinal, a mesma frase “hoje vai chover” vai soar como uma pergunta se voce disser a última sílaba num tom significativamente mais agudo que o resto da frase e vai soar como uma afirmacao se voce mantiver na mesma regiao toda a frase.

Nova guinada no assunto pra falar de línguas, o que não deixa de ser falar sobre voz (se voce chegou até aqui, me acompanha que tem a ver com o assunto): Como brasileiro que vive na Alemanha, apesar de falar um péssimo alemao, não passo nem um dia que seja em que não pense sobre diferencas e semelhancas entre línguas até porque aqui tem gente de todo canto. Certa vez uma amiga chinesa do curso de alemao me contava que a língua chinesa é constiuída por três tons (regioes de fala) distintos (um grave, um agudo e um meio termo, sempre de acordo com a tessitura da voz do falante) e que sem usar isso é simplesmente impossível falar chinês. A primeira pergunta que lhe fiz foi “Ora, entao voces não podem sussurar” e ela confirmou que não se pode. Explico: a

diferenca entre a voz sussurada e a “normal” é que no sussurro simplesmente não fazemos vibrar as cordas vocais (as responsáveis por se gerar “notas”, “tons”). No sussurro modelamos a saída do ar que vem livremente dos pulmoes com a boca de maneira a gerar vogais. Na fala, as cordas vocais se fecham, como quem quer impedir a passagem de ar, e por isso vibram e essa vibracao será amplificada por uma série de espacos que temos na face. Quando as cordas vocais vibram num certo tipo de padrao regular, geramos sons de altura definidas (o que chamamos de “notas” ou “tons” durante todo esse texto) e quando vibram de maneira irregular geramos sons de altura não definida (popularmente conhecido como ruído). Seja lá qual dos dois tipos de vibracao vierem das cordas vocais, o formato da nossa boca e saída ou não pelo nariz ao liberar o som vao determinar as vogais (a vogal “a” com a boca mais aberta, a “u” mais fechada e assim por diante). As consoantes não tem nada a ver com tons (tente cantar ao som de “t”como vc canta com som de “a”. Lembrete: cantar ao som de “t” deve soar “ttttttt” e não “têêêêêê”). As consoantes são as formas distintas que temos de articular vogais, ou seja, se voce, em vez de pronunciar a vogal “a” depois que a boca já está aberta, pronunciá-la liberando o som enquanto, depois de encostar a língua nos dentes superiores, abre a boca o resultado é um “ta”, se falar a vogal “a” depois de deixar um pouco de ar passar entre os dentes o resultado é um “xa” e assim por diante...

“Tá! E daí?”, pergunta o leitor impaciente. E daí é que essa breve e simples explicacao nos permite falar de diferencas de sonoridade entre as línguas. Quando vim para a Alemanha, sabia, no máximo um par de palavras em alemao,me virava no ingles e um pouquinho de espanhol mas isso nao me impediu de andar pela rua e saber quem estava falando alemao, frances ou alguma língua da cultura árabe ou asiática que eu não poderia dizer o nome. Isso se dá porque cada língua possui suas particularidades na forma como soam as vogais (sendo que há línguas com mais vogais que outras) e consoantes e no que meu amigo Cristiano Fischer chama de música da língua, ou seja, como os acentos e as regioes de fala vao mudando ao longo de uma frase. A língua alema, por exemplo chama a atencao pelo fato de que as consoantes saltam ao ouvido pois soam muito mais fortes que no portugues e em qualquer outra língua que conheco. Para se ouvir a rádio de notícias na Alemanha e praticar a língua tive que comprar um rádio com agudos mais bem definidos, após um mês tentando escutar no celular, porque do contrário até parece que o rádio está chiando.

Tá! Mas se na língua alema se sobressaem tanto assim as consoantes, e, como vimos, notas musicais só podem soar com vogais, como é que soa o canto em alemao? É uma questao complicada. Pelo tempo que estou aqui, parece que praticamente 95% da música popular consumida na Alemanha é cantada em outras línguas (exceto cancoes tradicionais como as natalinas e infantis), mesmo entre músicos alemaes (predomínio do inglês, claro) e a música clássica que é o forte da tradicao musical alema quando cantada, eu diria que soa muito pouco alema. Ouvindo o povo falar alemao na rua ou no rádio eu entendo um bocado mas escutando uma ópera de Wagner não entendo nenhuma palavra. O modelo vocal na ópera (chamado bel canto, de origem italiana) é um modelo que permite, entre outras coisas, que o cantor projete a voz para um público muito grande (sem ajuda de microfones, obviamente) e sendo acompanhado por uma orquestra, ou seja, haja projecao! Consoantes, como não fazem uso de cordas vocais, são menos projetáveis que as vogais e por isso aquilo que me faz reconhecer a particularidade da língua alema (a forca das consoantes) se perde no bel canto. O microfone e a música popular do século XX tornaram possíveis que o canto fosse mais fiel à língua falada mas mesmo assim nao há tantos cantando em alemao. Por que será? Certamente há questoes históricas que influenciam nisso (o período pós-guerra também se marcou por uma grande parte dos alemaes pouco orgulhosos de sua história e suas tradicoes) mas será possível falarmos de línguas mais musicáveis que outras? Beleza é algo totalmente relativo, sabemos, mas me estranha a quantidade de pessoas dos mais distintos cantos do mundo que ao nos ouvir falar portugues dizem ser uma língua “gostosa de escutar”. Será que isso tem a ver com o fato de que o portugues é a língua que eu conheco em que as consoantes são menos acentuadas? Será que a “beleza” do portugues brasileiro está em deixar que a música das vogais soe com menos “ruído” (as consoantes)? E qual é o problema em deixarem soar as consoantes, tao importantes quanto as vogais para a fala? ...

Poderíamos seguir (como eu sigo) a vida toda elencando questoes sobre a voz musicalmente interessantes mas é bom dar um tempo também. O fato é que o texto aqui traz muita mais perguntas (mesmo assim,só uma pequena parte das perguntas possíveis de se fazer sobre o assunto) do que afirmacoes convictas, nem por isso é menos válido.Se serviu pra botar uma pulguinha atrás da orelha de quem possa se interessar pelo assunto já tá bom demais. Enquanto isso, sigo levantando perguntas. Há quem se interesse por isso, como eu. Com elas, nesse caso, me parece cada vez mais claro que a questao “por que o homem faz música?” e a questao “por que o homem canta?” estao mais próximas do que os teóricos têm se dado conta. Eu diria, quase inseparáveis.

Um comentário:

  1. Sou chata, por isso comento. ADORNO, Theodor. Lírica e sociedade. ELIOT, T. S. A função social da poesia. É teoria, mas vala a pena.

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