segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A “bicofobia” no campo musical ou como lancar algumas toneladas do peso sobre os ombros de um músico ao mar.

O campo da música é muito competitivo. Talvez não seja mais do que qualquer outro campo profissional, afinal, um carpinteiro ou um advogado se preocupa naturalmente com seu trabalho mas também está sempre de olho naqueles que desempenham a mesma atividade. Nenhum profissional escapa da comparacao entre si mesmo e seus pares e, por isso, digo sem pestanejar, o campo da música é competitivo. A competitividade, como tudo na vida, pode ser vista por vários ângulos. Por exemplo, não dá pra negar que, quer queira o quer não, ela te faz um profissional mais cuidadoso, mais esforcado, enfim, um profissional melhor (afinal, se voce der bobeira, sempre tera alguém de olho no seu lugar), no entanto, me parece que existem certas competitividades que são profissionalmente burras no campo da música (só posso falar da minha área, obviamente) e que só atrasam o desenvolvimento do campo como um todo. Vejamos se consigo me explicar:
No meio musical de Porto Alegre, aprendi um termo que não havia ouvido até entao em todos meus anos no meio da música em Curitiba ou em Londrina: bico. O bico na conversa entre músicos em Porto Alergre faz mencao ao músico amador ou ao músico profissional que não possui certas habilidades consideradas “básicas” para ser músico como improvisar, ser capaz de tocar músicas com determinado grau de dificuldade, entre outras habilidades que variam de grupo pra grupo (os jazzistas acham que um músico tem que saber tais coisas, os sambistas acham outras, os choroes outra, os “eruditos” e assim vai). Isso me parece algo comum em qualquer profissao: estabelecer um mínimo de habilidades que o profissional da área precisa ter. O problema é que, muitas vezes, se voce leva ao pé da letra as habilidades que certos músicos julgam como mínimo sobram cerca de dez “verdadeiros músicos” numa metrópole como Porto Alegre (habitada também, portanto, por centenas de músicos “bicos”). Nesse caso, há duas opcoes possíveis: ou uma maldicao diabólica foi jogada sobre a cidade e por isso apenas um em cada mil músicos chegará a ser um “músico de verdade” ou o parametro utilizado pra avaliar quem é músico ou não está um tanto deslocado da realidade. Eu apostaria na segunda opcao!
Eu simplesmente não aguento mais ouvir o tempo todo “Esse cara não toca nada”, “A música que não sei quem faz é uma merda”, “Aquele tal é bico”,etc,etc... gratuitamente, sem ninguém ter perguntado ou sem o cara ter feito nada pra ele. Tem até gente que vai às casas de música ao vivo toda semana pra ficar avaliando (falando mal, claro) os músicos que lá estao trabalhando. Eu mesmo cansei de estar tocando no palco numa boa e, de repente, sentir o clima pesando, um negócio estranho... adivinha o que era!?!?
Em primeiro lugar, se o cara tá ali trabalhando é porque tem gente que curte o som dele (se voce não curte é só ir embora). Quando não curtirem vao botar outros músicos no lugar, pode ter certeza. Segundo, se o cara é mesmo iniciante, ele precisa comecar de algum jeito e se ele ta dando os pulos dele pra comecar sem sacanear ninguém, deixa o cara trabalhar em paz, porra! Terceiro, se voce acha que toca melhor que ele ou que sua música é mais qualquer coisa que a dele, seria bom voce parar pra pensar porque será que voce está lá parado reclamando (sem ganhar nada pra isso) em vez de ter um lugar pra tocar nesse dia.
As desculpas para estar lá parado em vez de buscar fazer o seu trabalho são variadas. Uns reclamam que pra tocar em tal lugar tem que fazer parte de alguma panelinha, outros culpam o público (!) que só ouve música de má qualidade e tem até quem diga que hoje em dia é só botar um shortinho, tocar qualquer coisa e dar uns sorrisinhos que o público compra. O interessante é que em vez de construir o seu espaco e o seu público o cara posa de “o” grande conhecedor que, do alto da sua sapiencia, avalia a producao musical dos outros músicos e o gosto musical do pobre e ignorante público que os assiste. Enfim, um misto de arrogancia, ingenuidade e amadorismo.
Arrogancia, obviamente, por achar que o público tem que gostar daquilo que ele acha que “deveria” gostar e que o músico tem que tocar do jeito e o que ele acha que “deve”. Ingenuidade por achar que o fato de ele ficar jogando suas “avaliacoes” aos quatro ventos vai fazer com que as coisas melhorem pra ele ou que ele se torna ummelhor músico por isso. E amadorismo por nao perceber que existe público para praticamente todas as propostas de trabalho em música (se não há hoje um espaco pra trabalhar com sua proposta, esse espaco deve ser construído cuidadosamente) e que não há nenhuma área profissional em que voce trabalha só com o que quer. Se alguém pensa que a vida de músico é a busca pelas mais belas músicas e por ser um músico “perfeito” deveria botar os pés no chao, se quer realmente viver disso. Nunca vi um músico (que vive só de música, obviamente) que tenha tocado só o que quis durante toda a carreira e sem ter de participar de trabalhos que não eram os que mais lhe interessavam para sobreviver (como em qualquer outra profissao).
Não é a toa, portanto, que todos os “apontadores de bico” que eu já conheci (sem excessao) não pagavam suas contas (quando pagavam) do dinheiro ganho com música. Esse tipo de visao romantica que move os apontadores de bicos só é possível pela falta de conhecimento do campo, afinal, no campo da música, tocar “bem” (com aspas que um termo relativo como esse merece), é, chutando muito alto, 50% de todo o seu trabalho. O resto é fazer contatos, saber mante-los, tratar bem seus colegas e seu público (voce precisa deles, óbvio), divulgacao, boa dinamica de ensaio, saber manejar seus equipamentos, estudo, entre outras milhares de coisas que compoe o que é trabalhar com música (não confunda com “ser um músico perfeito”). Em outras palavras, quem toca razoavelmente bem para a sua proposta e sabe fazer bem essa outra parte necessária do trabalho de músico vai trabalhar sempre e merecidamente (para a tristeza dos apontadores de bico que passaram o tempo todo com um olhar míope em relacao ao ofício de músico) porque sabe manejar de maneira mais proveitosa o conjunto das habilidades necessárias ao ofício de músico e não só a técnica musical. Trabalhar com música não é um mundo de fantasia onde as casas são de chocolate, os rios de suco de uva e voce faz só o que quer preocupado apenas em ser “fiel à sua arte” e sim um campo de trabalho com prazos a cumprir, horários e muitas atividades que voce preferia não estar fazendo como qualquer outro.
Mas a maior trava geralmente está na cabeca do próprio músico quando acredita que realmente existe um modelo ideal de músico que todos devem seguir e perde noites de sono se culpando por não ter estudado tantas horas no dia ou não tocar como tal ou qual pessoa. O medo de ser “bico” (chamemos de bicofobia) faz muitos e muitos músicos se trancarem no quarto estundando por horas e horas tentando tirar músicas cada vez mais difíceis ou escalas cada vez mais rápidas pra mostrar no próximo show, jam ou roda de choro. Não tenho nada contra alguém querer aprimorar a sa técnica instrumental (quem não gosta de sentir que seus dedos respondem bem no seu próprio instrumento?). O problema é quando se toma a idéia de músico virtuosístico como modelo que todos devem seguir (independente da proposta) e se instaura um verdadeiro culto à complexidade e à dificuldade onde as músicas são sempre executadas buscando um espacinho pra mostrar quao rápido o cara pode tocar e às vezes num andamento muito mais rápido do que a música é comumente é tocada. Ao mesmo tempo, no campo da composicao, fica uma disputa pra ver quem “entorta” mais colocando um acorde mais cabuloso, uma modulacao mais inesperada, alguma convencao mais complicada a ponto de parecer feio mostrar composicoes com solucoes simples, mesmo que sejam usadas de maneira inteligente e coerente. Enfim, uma espécie de masturbacao coletiva que fala mais sobre as angústias dos músicos ali presentes do que propriamente de suas propostas musicais.
Felizmente, já não perco mais noites de sono com essas preocupacoes. Já perdi, e muitas, como qualquer um que entra no ramo. Aliás, quando entrei na faculdade de música, tinha um objetivo muito claro: ser um violonista tao bom quanto o Marco Pereira e viver de dar concertos por aí. Mas isso não era tudo o que eu queria.Também queria escrever tao bem quanto o Luis Fernando Veríssimo, saber tanto de História, Filosofia e Política, quanto o José Arbex Jr. entre outras coisas. O problema é que pra ser cada uma dessas coisas é preciso dedicacao e muito estudo sistemático. Para ser um violonista desse gabarito é necessário, chutando baixo quatro horas diárias de estudo do instrumento e eu segui perdendo o sono me culpando por não tocar como eu queria. Gracas à faculdade Música onde me graduei, aprendi que há muitas diferentes formas de ser músico e que a Música é um campo muito maior do que a performance em cima do palco, o que me permitiu, certo dia, admitir que não tenho saco pra ficar estudando instrumento todo dia e por tanto tempo. Admiro quem tem e desejo sucesso mas hoje a idéia de ser um instrumentista virtuose já não é tao mágica quanto era no comeco. Sinceramente não me acho menos músico do que o Marco Pereira só porque não toco nem um décimo do que ele toca violao. Me sinto menos músico que ele vendo toda a experiencia que ele carrega consigo de ter tocado com tanta gente, gravado milhoes de vezes, feito arranjos pra um bocado de gente, etc, assim como me sinto menos músico do que um Joao Gilberto, por exemplo, mesmo sabendo que eu faco coisas técnicamente bem mais difíceis ao violao que ele, no entanto, obviamente tenho muito menos experiencia que ele em muita coisa. O que há em comum entre violonistas tao tecnicamente diferentes como Marco Pereira e Joao Gilberto é que suas técnicas violonísticas são do tamanho exato de suas propostas musicais e as propostas são muito claras. Em outras palavras, a técnica desvencilhada de um sentido, uma proposta já não me chama mais a atencao.
Hoje toco meu violao e o meu cavaquinho honesto sem culpa. O que eu toco hoje é suficiente pra tocar com um número muito grande de propostas musicais (as muito virtuosísticas não) e sei que me defendo razoavelmente em rodas de choro, samba ou outros encontros de músicos (claro que muitas vezes eu sinto falta da técnica mais apurada mas não me culpo. Fiz a minha escolha). Volta e meia eu me pego tocando uma frase por tocar ou dificultando uma música sem nem saber porque e sem a música me ter sugerido isso mas aí paro pra me concentrar na música que está na minha cabeca e não deixar que meus dedos saiam querendo mostrar servico só pra mostrar. Se eu não conseguir tocar o que está na minha cabeca adapto ou escrevo pra outra pessoa com técnica mais apurada tocar. Não tem problema. O que eu não me permito mais é me deixar influenciar pela “bicofobia”. Estou em formacao, como qualquer músico, mas já tenho experiencias demais em música para cultivar esses traumas de principiantes.