quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Comentários sobre “o fim da cancao” ou pequeno guia pra comprender a MPB contemporanea.


Rafael R. da Silva



“O problema na música popular brasileira é que, a cada

vinte anos, o pessoal descobre que aconteceram coisas

muito bacanas a vinte anos atrás”.

Edgar Scandurra, guitarrista.


Para alguns, o título pode soar estranho. Porque a forma cancao teria terminado justamente agora em que o consumo musical, no Brasil, pelo menos, é constituído primordialmente por cancoes (mesmo considerando a monumental retomada de generos instrumentais como o choro entre os jovens brasileiros)? A teoria do fim da cancao é uma forma de ver a realidade da música popular muito comum nos meios acadêmicos. Na verdade, já não aguento mais ouvir e ler sobre isso e, para mim, isso sempre soou tao sem pé nem cabeca que nunca me animei a contra argumentar. Me animei agora, talvez porque desde que estou na Alemanha não ouco música brasileira o tempo todo e nem tem tanta gente comentando sobre, entao tenho estado mais livre pra retomar antigas cancoes que não ouco há muito tempo ao mesmo tempo que pensando muito sobre a producao atual. Enfim, digerir tudo o que sei e ouvi da música brasileira até entao.

A teoria do fim da cancao é, para mim, sem pé nem cabeca mas isso não quer dizer que não entendo como essa visao se constitui. Na verdade, quando ouco, me vem a cabeca os rostos daqueles que a defendem e não me espanto nem um pouco em perceber que, muitas vezes são os mesmos que sustentam outras teorias apocalípticas como o fim da arte, o fim da música e, no limite, o fim da história. Em linhas bem gerais e até simplistas (para me esquivar de retomar aqui a história da teoria), eu diria que a teoria é construída a partir de um sentimento de que “tudo o que podia ser inventado já foi inventado e agora tudo o que temos é repeticao do mesmo” ou até “nunca mais teremos um outro Chico Buarque, um Pixinguinha ou um Tom Jobim”.

Faco aqui um pequeno parenteses pra relatar um causo que me parece que tem avercom o debate pra retomar alinha de raciocinio mais adiante: Certa vez, numa escola em Porto Alegre onde lecionei na disciplina de música houve uma palestra sobre a nova geracao de adolescentes e sua relacao com o mundo digital. Dados muito interessantes mas que reforcam o que todos sabem, ou seja, que é uma geracao com grande familiaridade com os meios digitais e habituada à rapidez com que as informacoes nos são passadas nos dias de hoje. Muito interessante pra quem trabalha com esse púlico, como era o caso. O que me pareceu mais interessante, no entanto, foi ver como os professores de portugues e literatura puxaram o debate pro lado de se queixar de como os jovens tem lido pouco atualmente, que passam o dia no computador e que “no meu tempo não era assim”... Depois de mais de meia hora de debate me senti obrigado a intervir com uma pergunta. Me desculpei por estar me metendo num assunto que não é a minha área e disse que não entendia como se chegou à conclusao de que os jovens lêem pouco. Pra mim, disse, me parece que nunca os jovens leram tanto, haja visto o tempo que se envolvem com uma máquina (o computador) que basicamente possibilita atividades como chats, jogos e sites onde o fator leitura e escrita é simplesmente necessário. Vendo que os professores concordaram comigo, me senti livre para dizer que seria muita ingenuidade nossa, após tantos anos de luta dos professores para fazer os alunos lerem mais, achar que eles leriam do jeitinho que a gente quer, ou seja, sem adaptar o exercício da leitura e da escrita à sua realidade e às suas necessidades pessoais.

Seguindo o mesmo raciocinio, me parece de uma ingenuidade tremenda esperar que apareca um novo Chico Buarque ou outro Tom Jobim. Aliás, quem realmente se interessa por isso? Por que carecemos de outros que sigam o modelo desses sendo que já deixaram uma obra tao vasta e rica? Se todos compusessem como Chico Buarque a musica seria uma verdadeira chatice porque simplesmente não seriamos capazes de entender como as solucoes estéticas do Chico são particulares. Só entendemos a importancia de algo quando lidamos com coisas diferentes. Eu realmente sou fascinado pela obra do Chico (ou “dos Chicos”, considerando que sua obra sofreu severas mudancas ao longo da carreira) mas principalmente porque escuto milhares de coisas diferentes ao longo da semana que me permitem ouvir o Chico e perceber como sua obra é particular e isso não desqualifica os demais. Não quer dizer que o Chico é “melhor” que Luiz Gonzaga, que Arrigo Barnabé, que o Trio Mocotó, que os Mamonas Assassinas ou que a Ivete Sangalo. Só quer dizer que são coisas tao diferentes uma das outras que cada um nos pede um tipo de escuta, um tipo de postura diferente pra entender sua importancia no seu contexto.

Do mesmo modo, devemos ouvir a producao atual considerando que estamos falando de música popular brasileira, é claro, e portanto, considerando Donga, Noel Rosa, Ary Barroso, Joao Gilberto, os Novos Baianos, Tiao Carreiro e Pardinho, Elis Regina, as Velhas Guardas das escolas de samba, Jorge Ben, os Mutantes, o Premeditando o Breque, o Ultraje a Rigor, os Raimundos, Chico Science entre milhoes de coisas que constituiram o lugar que essas producoes ocupam hoje mas com cuidado para não ficar olhando fixamente para a mao de quem está apontando para algo diferente.

Um país que tem atuando agora e ao mesmo tempo Cordel do fogo encantado, Zeca Baleiro, Chico César, Monica Salmaso, Los Hermanos (e seus trabalhos individuais), Arthur de Faria e seu Conjunto, Giana Viscardi, Arnaldo Antunes, Totonho e os Cabra, Marcos Sacramento, Vanessa da Mata, Nacao Zumbi, Ana Carolina e Seu Jorge (para ficarmos no que a minha péssima memória permite agora) e reclama da falta de novidades na cancao nacional é o maior exemplo do que eu chamaria de reclamar de barriga cheia[i] (nota 1).

Mas ninguém desses caras canta como a Elis Regina, faz música como o Chico Buarque ou faz letras como Aldir Blanc ou Vinícius de Moraes, alguém pode contraargumentar, e com razao. O que não se pode fazer é julgá-los por isso, até porque, apesar de serem todos grandes conhecedores da música popular brasileira, ninguém ali está se propondo a imitar ninguém. Em outras palavras, se cada um deles tem a sua proposta e ninguém nunca declarou querer fazer algo parecido com o Chico, por que diabos nós os julgariamos como se eles quisessem competir com ele? O próprio Chico conhece profundamente as cancoes de Edu Lobo, Noel Rosa, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Tom Jobim e nunca se dispos a competir com esses caras. Nem faria sentido. Ninguém deixaria de ouvir esses caras só porque o Chico surgiu assim como ningué vai deixar de ouvir o Chico só porque existem os Los Hermanos. São coisas relacionadas mas imcomparáveis. Ouvir música não é um exercício de criar rankings ou de criar seitas fundamentalistas. Todo mundo tem seu espaco e ninguém precisa ir pra igreja se confessar pelo pecado de ter ouvido Totonho e os Cabra (e gostado) mesmo sendo grande fa do Chico.

Outro argumento que sempre aparece e que é o de que não há mais nada de novo a se fazer na música popular visto que todas as escalas, os modos, as cadencias e as modulacoes possíveis já foram feitas e por isso ninguém mais vai compor como o Pixinguinha, o Tom ou o Chico. O que muitos poucos se dao conta é que se formos levar esse argumento à risca, não existe nada de novo na música brasileira desde muito antes dela existir como a conhecemos. Esse argumento já foi repetido milhoes e milhoes de vezes na história da música ocidental (praticamente a única obcecada pela “evolucao” constante) e isso, provavelmente, desde Monteverdi. Desde entao vieram Bach, Beethoven, Wagner, Mahler, Bártok, Schoenberg, Webern e depois de cada um desses vinha alguém e dizia “Tá. Agora sim não tem mais o que inventar” e como, realmente, já não se enxergava outras possibilidades entre o dó, ré,mi, fá, sol, lá, si, comecaram atrabalhar com microtons, síntese sonora, escrever concertos com sons de máquinas de escrever, com o silencio... e a lista é grande. Durante a universidade cansei de ouvir que não havia mais o que inventar mas o mais interessante é que absolutamente nenhum desses que repetiam o argumento deixou de ouvir música por isso. Todos eles continuaram compondo, tocando ou ouvindo mesmo sabendo que aquilo já foi usado por alguem em algum momento. Por que nenhum desses que perdem o sono por não estar fazendo nada que já não tenha sido usado largou o ramo e foi viver de informática ou carpintaria? Ora, porque a música é muito mais do que uma corrida pra ver quem usa algo primeiro. Por que diabos alguém jogaria toda a obra do Tom Jobim, do Chico, do Dorival Caymmi e do Ary Barroso no lixo só porque todas as escalas, acordes e modulacoes ali presentes já foram usadas há, pelo menos, um século antes deles? Por acaso a sinfonia número 1 do Beethoven e a cancao “Milagre” do Caymmi são a mesma coisa visto que são baseados na mesma escala de dó maior?

Há que se comprender que música é muito mais que bolinhas na partitura, escalas ou tonalidades e que é um campo onde a lei “um peso e uma medida” não funciona. Gostamos de músicas que nos fazem lembrar de algo, que nos sugerem determinados sentimentos, que nos desafiam intelectualmente, que nos fazem sentir parte de um grupo, que nos dao uma vontade tremenda de dancar ou nos ajudam a manter o animo enquanto fazemos faxina, etc, etc, etc. Cada um em cada momento ouve música por algum motivo e se todo mundo que faz música estivesse preocupado em fazer coisas cada vez mais complexas para agradar os críticos certamente a música não seria tao presente em nosso cotidiano como é. Até porque desde quando complexidade é sinonimo de beleza ou de algo interessante? Quem me explica o porque a cancao “Cuitelinho” recolhida por Paulo Vanzolini no interior do Mato Grosso (nem se sabe quem compos) me toca tao profundamente apesar de ter apenas dois acordes numa simples escala maior?

Tirado o grande peso da culpa e do saudosismo das nossas costas, podemos curtir e perceber a riqueza da producao musical hoje no Brasil. Quem ainda não se deu conta da profunda chacoalhada que grandes letristas e cancioneiros como Zeca Baleiro, Chico César, Seu Jorge, Ana Carolina, Vanessa da Mata, Rodrigo Amarante, Marcelo Camelo e Arnaldo Antunes, excelentes cantores como Giana Viscardi, Monica Salmaso, Marcos Sacramento, Vanessa da Mata, Seu Jorge, Ana Carolina e de grupos que têm explorado texturas musicais extremamente inovadoras ou arranjos extremamente inteligentes como o Cordel do fogo encantado, Los Hermanos, Arthur de Faria e Totonho e os Cabra “precisa” urgentemente reformular o playlist sem, é claro, apagar o Chico, o Gil e o Tom do HD.



Notas:

[i] Isso para ficarmos dentro do campo da chamada cancao popular e, nela, deixando grandes nomes da antiga que continuam na ativa (como o próprio Chico, Joao Bosco e assim vai) e dentro do minimamente reconhecido pelo meio acadêmico e pela classe média. O funk carioca, o pagode e o axé, entre outros dotados de menos prestígio entre os intelectuais, também tem sua importancia mas essa é uma discussao maior da qual vou me esquivar por hora. A música instrumental popular brasileira não fica nem um pouco atrás. Podemos citar, novamente com o perdao da fraca memória, o Trio Curupira, Maurício Carrilho, Guinga, Humberto Araújo, André Mehmari, Orquestra Popular de Câmara além de tantos outros que já tem seu trabalho próprio (não só como instrumentistas) reconhecido há muito tempo e que continuam produzindo novidades como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e César Camargo Mariano.


Sugestoes de escutas da cancao brasileira contemporanea: