quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Toda pessoa soa ou o canto enquanto encrenca filosófica

Desde muito cedo me perco facilmente em questoes, digamos, filosóficas. Lembro-me bem de que com 5 ou 6 anos me pegava por muito tempo pensando “Tá. Mas se Deus criou o mundo do nada, o que havia antes? Como era esse nada? Que que Deus ficava fazendo lá (no nada) antes de criar um mundo? Aliás, o que existia antes de Deus? Alguém criou Deus? Se alguém criou Deus, cade ele agora?...” e esse tipo de coisa. Essa é uma característica que nunca me abandonou e nem deu sinal de que pretende ir mas naos sei até que ponto é uma característica tao individual. Certamente, todo mundo se perde de vez em quando nessas perguntas mas muitas reacoes das pessoas que conviveram comigo nesses 26 anos me fizeram ter a idéia de que talvez eu dedique mais tempo a essas questoes que o “normal”. Bem, fato é que se acaso eu tivesse reais interesses em acabar com isso provavelmente teria cometido um grave erro em escolher trabalhar com música pois (pode ser apenas minha visao de quem não conhece direito as outras áreas) essa é uma área onde vc pode viajar grande numa série de perguntas que puxam outras, que puxam outras, que puxam...

Dentro das questoes relacionadas à música que me fazem ficar viajando um bocado, uma das maiores é a voz e sua relacao com a música e isso há, pelo menos, uns 5 anos atrás quando por uma soma de vários fatores, apesar de nao me considerar ainda cantor, comecei a dar aulas de canto. “Mas como assim ´o canto´? O que há de polêmico em cantar?”.Bom, pode parecer que estou fugindo do assunto mas siga meu raciocínio:

A música é um fenomeno que se manifestará e manifesta em todas (eu disse todas!) as comunidades de humanos que se tem notícia nesse planeta. É bem provável que as raízes das práticas musicais tenham início entre outros hominídeos anteriores ao próprio hommo sapiens sapiens mas não se pode precisar qual. O fato é que todas as comunidades humanas desde os esquimós, passando por turcos, índios, chineses, até as comunidades urbanas do mundo todo possuem algo a que podemos chamar música e isso desde que se tem notícia de que humanos ocupam esse planeta. Isso já é algo que me faz parar pra pensar por muito tempo, afinal, se a música está em quaquer lugar onde há humanos, estamos muito próximos de dizer que ela é “natural”, que ela é essencial para que a espécie humana se mantenha no planeta, do contrário alguma comunidade de humanos poderia viver sem ela. Ou seja, há algo em comum entre respirar, comer, defecar, crescer e fazer/consumir música, afinal, são coisas que aparecerao onde quer que o humano esteja, mesmo considerando que não são coisas assim tao similares.

A partir desse ponto da linha de raciocínio pode-se ir para muitos lados: podemos ir lá na biologia discutir com Darwin o papel da música na adaptacao da raca humana a esse planeta (como aqui), podemos ir pro lado da antropologia pra discutir que apesar de a música ser natural para o humano, o tipo de música e o modo que será consumida não é (!) e que a cultura se encarregará de determinar isso (como aqui), pro lado da estética, pro lado das questoes de gênero... mas para me direcionar pro assunto que propus lá em cima quero chamar um outro dado: A música está presente sim em todos os povos que se tem notícia e existem milhoes e milhoes de tipos de instrumentos musicais por esse mundao mas apenas um está presente em absolutamente todos os povos: a voz. Em outras palavras, a música cantada é algo que está presente em todas as culturas enquanto a música “instrumental” não. Alguém pode argumetar que isso acontece porque a voz foi provavelmente o primeiro instrumento musical utilizado porque vem contigo desde que se nasce, e faz sentido, mas por que ainda hoje com tantos instrumentos à disposicao e tantas possibilidades de se fazer música ainda há tanta resistência à chamada musica instrumental (sem voz)? Aliás, porque a simples presenca de um instrumento é capaz de gerar essa diferenciacao que é tao importante em música (cancoes e música instrumental)? Ou seja, tomando emprestado a questao levantada aqui por Rafael José de Menezes (o etnomusicólogo que eu quero ser quando crescer, digamos, simplesmente), o que será, enfim, cantar que “tocar” não é?

Certamente alguém aí se adiantou em responder “ora, a voz tem a vantagem de podermos colocar letras, palavras que expressam sentimentos e tal...”. OK, não deixa de ser algo a se considerar, mas por que será entao que a música estadounidense é tao consumida ao longo do planeta mesmo entre aqueles que não falam inglês? “Por que o imperialismo norte americano impôs”, alguém gritou aí no fundo, ora entao porque a indústria fonográfica de lá não investiu em sua música instrumental, já que o pessoal não ia entender a letra mesmo? Não seria mais fácil pular a barreira da língua? O que havia na cancao estadounidense a favor da tal “investida imperialista americana” que não havia em sua música instrumental?

O fato é que não é necessário música para passar uma mensagem verbal. Para isso a gente tem a fala ou mesmo a escrita, do contrário, escutaríamos música até mesmo na padaria quando alguém cantasse para o atendente “me vê quatro paes, por favor”. Ou seja, não foi a necessidade de se comunicar (verbalmente) que levou algum hominídeo, há alguns milhoes de anos, a vibrar suas cordas vocais num padrao diferenciado daquele que ele usava pra “falar” (todos concordam aí que a voz falada e a cantada são distintas?) e, muito menos, que mantendo esse mesmo padrao de vibracao (a voz cantada) passasse a mudar suscessivamente (e num curtissimo espaco de tempo) entre sons mais graves e mais agudos criando assim melodias. Por outro lado, há que se considerar que não existe um abismo entre o canto e a fala, ainda que saibamos indicar com conviccao se alguém está cantando ou falando. Para nós que falamos português (como eu “presumo” que seja o caso do querido leitor), a distancia entre canto e fala provavelmente é maior que para os chineses ou grande parte das línguas de raiz bantu da África, por exemplo, onde um mesmo fonema pode significar coisas totalmente opostas dependendo se são ditos na regiao mais aguda ou mais grave da voz (as chamadas línguas tonais). Há comunidades africanas em que a palavra “sim” e a palavra “não” são constituidas exatamente pelo mesmo fonema variando apenas a “nota” em que é dita, por exemplo. Nem por isso podemos dizer que as “notas” da voz não influenciam em nossa língua (nem em qualquer outra), afinal, a mesma frase “hoje vai chover” vai soar como uma pergunta se voce disser a última sílaba num tom significativamente mais agudo que o resto da frase e vai soar como uma afirmacao se voce mantiver na mesma regiao toda a frase.

Nova guinada no assunto pra falar de línguas, o que não deixa de ser falar sobre voz (se voce chegou até aqui, me acompanha que tem a ver com o assunto): Como brasileiro que vive na Alemanha, apesar de falar um péssimo alemao, não passo nem um dia que seja em que não pense sobre diferencas e semelhancas entre línguas até porque aqui tem gente de todo canto. Certa vez uma amiga chinesa do curso de alemao me contava que a língua chinesa é constiuída por três tons (regioes de fala) distintos (um grave, um agudo e um meio termo, sempre de acordo com a tessitura da voz do falante) e que sem usar isso é simplesmente impossível falar chinês. A primeira pergunta que lhe fiz foi “Ora, entao voces não podem sussurar” e ela confirmou que não se pode. Explico: a

diferenca entre a voz sussurada e a “normal” é que no sussurro simplesmente não fazemos vibrar as cordas vocais (as responsáveis por se gerar “notas”, “tons”). No sussurro modelamos a saída do ar que vem livremente dos pulmoes com a boca de maneira a gerar vogais. Na fala, as cordas vocais se fecham, como quem quer impedir a passagem de ar, e por isso vibram e essa vibracao será amplificada por uma série de espacos que temos na face. Quando as cordas vocais vibram num certo tipo de padrao regular, geramos sons de altura definidas (o que chamamos de “notas” ou “tons” durante todo esse texto) e quando vibram de maneira irregular geramos sons de altura não definida (popularmente conhecido como ruído). Seja lá qual dos dois tipos de vibracao vierem das cordas vocais, o formato da nossa boca e saída ou não pelo nariz ao liberar o som vao determinar as vogais (a vogal “a” com a boca mais aberta, a “u” mais fechada e assim por diante). As consoantes não tem nada a ver com tons (tente cantar ao som de “t”como vc canta com som de “a”. Lembrete: cantar ao som de “t” deve soar “ttttttt” e não “têêêêêê”). As consoantes são as formas distintas que temos de articular vogais, ou seja, se voce, em vez de pronunciar a vogal “a” depois que a boca já está aberta, pronunciá-la liberando o som enquanto, depois de encostar a língua nos dentes superiores, abre a boca o resultado é um “ta”, se falar a vogal “a” depois de deixar um pouco de ar passar entre os dentes o resultado é um “xa” e assim por diante...

“Tá! E daí?”, pergunta o leitor impaciente. E daí é que essa breve e simples explicacao nos permite falar de diferencas de sonoridade entre as línguas. Quando vim para a Alemanha, sabia, no máximo um par de palavras em alemao,me virava no ingles e um pouquinho de espanhol mas isso nao me impediu de andar pela rua e saber quem estava falando alemao, frances ou alguma língua da cultura árabe ou asiática que eu não poderia dizer o nome. Isso se dá porque cada língua possui suas particularidades na forma como soam as vogais (sendo que há línguas com mais vogais que outras) e consoantes e no que meu amigo Cristiano Fischer chama de música da língua, ou seja, como os acentos e as regioes de fala vao mudando ao longo de uma frase. A língua alema, por exemplo chama a atencao pelo fato de que as consoantes saltam ao ouvido pois soam muito mais fortes que no portugues e em qualquer outra língua que conheco. Para se ouvir a rádio de notícias na Alemanha e praticar a língua tive que comprar um rádio com agudos mais bem definidos, após um mês tentando escutar no celular, porque do contrário até parece que o rádio está chiando.

Tá! Mas se na língua alema se sobressaem tanto assim as consoantes, e, como vimos, notas musicais só podem soar com vogais, como é que soa o canto em alemao? É uma questao complicada. Pelo tempo que estou aqui, parece que praticamente 95% da música popular consumida na Alemanha é cantada em outras línguas (exceto cancoes tradicionais como as natalinas e infantis), mesmo entre músicos alemaes (predomínio do inglês, claro) e a música clássica que é o forte da tradicao musical alema quando cantada, eu diria que soa muito pouco alema. Ouvindo o povo falar alemao na rua ou no rádio eu entendo um bocado mas escutando uma ópera de Wagner não entendo nenhuma palavra. O modelo vocal na ópera (chamado bel canto, de origem italiana) é um modelo que permite, entre outras coisas, que o cantor projete a voz para um público muito grande (sem ajuda de microfones, obviamente) e sendo acompanhado por uma orquestra, ou seja, haja projecao! Consoantes, como não fazem uso de cordas vocais, são menos projetáveis que as vogais e por isso aquilo que me faz reconhecer a particularidade da língua alema (a forca das consoantes) se perde no bel canto. O microfone e a música popular do século XX tornaram possíveis que o canto fosse mais fiel à língua falada mas mesmo assim nao há tantos cantando em alemao. Por que será? Certamente há questoes históricas que influenciam nisso (o período pós-guerra também se marcou por uma grande parte dos alemaes pouco orgulhosos de sua história e suas tradicoes) mas será possível falarmos de línguas mais musicáveis que outras? Beleza é algo totalmente relativo, sabemos, mas me estranha a quantidade de pessoas dos mais distintos cantos do mundo que ao nos ouvir falar portugues dizem ser uma língua “gostosa de escutar”. Será que isso tem a ver com o fato de que o portugues é a língua que eu conheco em que as consoantes são menos acentuadas? Será que a “beleza” do portugues brasileiro está em deixar que a música das vogais soe com menos “ruído” (as consoantes)? E qual é o problema em deixarem soar as consoantes, tao importantes quanto as vogais para a fala? ...

Poderíamos seguir (como eu sigo) a vida toda elencando questoes sobre a voz musicalmente interessantes mas é bom dar um tempo também. O fato é que o texto aqui traz muita mais perguntas (mesmo assim,só uma pequena parte das perguntas possíveis de se fazer sobre o assunto) do que afirmacoes convictas, nem por isso é menos válido.Se serviu pra botar uma pulguinha atrás da orelha de quem possa se interessar pelo assunto já tá bom demais. Enquanto isso, sigo levantando perguntas. Há quem se interesse por isso, como eu. Com elas, nesse caso, me parece cada vez mais claro que a questao “por que o homem faz música?” e a questao “por que o homem canta?” estao mais próximas do que os teóricos têm se dado conta. Eu diria, quase inseparáveis.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A “bicofobia” no campo musical ou como lancar algumas toneladas do peso sobre os ombros de um músico ao mar.

O campo da música é muito competitivo. Talvez não seja mais do que qualquer outro campo profissional, afinal, um carpinteiro ou um advogado se preocupa naturalmente com seu trabalho mas também está sempre de olho naqueles que desempenham a mesma atividade. Nenhum profissional escapa da comparacao entre si mesmo e seus pares e, por isso, digo sem pestanejar, o campo da música é competitivo. A competitividade, como tudo na vida, pode ser vista por vários ângulos. Por exemplo, não dá pra negar que, quer queira o quer não, ela te faz um profissional mais cuidadoso, mais esforcado, enfim, um profissional melhor (afinal, se voce der bobeira, sempre tera alguém de olho no seu lugar), no entanto, me parece que existem certas competitividades que são profissionalmente burras no campo da música (só posso falar da minha área, obviamente) e que só atrasam o desenvolvimento do campo como um todo. Vejamos se consigo me explicar:
No meio musical de Porto Alegre, aprendi um termo que não havia ouvido até entao em todos meus anos no meio da música em Curitiba ou em Londrina: bico. O bico na conversa entre músicos em Porto Alergre faz mencao ao músico amador ou ao músico profissional que não possui certas habilidades consideradas “básicas” para ser músico como improvisar, ser capaz de tocar músicas com determinado grau de dificuldade, entre outras habilidades que variam de grupo pra grupo (os jazzistas acham que um músico tem que saber tais coisas, os sambistas acham outras, os choroes outra, os “eruditos” e assim vai). Isso me parece algo comum em qualquer profissao: estabelecer um mínimo de habilidades que o profissional da área precisa ter. O problema é que, muitas vezes, se voce leva ao pé da letra as habilidades que certos músicos julgam como mínimo sobram cerca de dez “verdadeiros músicos” numa metrópole como Porto Alegre (habitada também, portanto, por centenas de músicos “bicos”). Nesse caso, há duas opcoes possíveis: ou uma maldicao diabólica foi jogada sobre a cidade e por isso apenas um em cada mil músicos chegará a ser um “músico de verdade” ou o parametro utilizado pra avaliar quem é músico ou não está um tanto deslocado da realidade. Eu apostaria na segunda opcao!
Eu simplesmente não aguento mais ouvir o tempo todo “Esse cara não toca nada”, “A música que não sei quem faz é uma merda”, “Aquele tal é bico”,etc,etc... gratuitamente, sem ninguém ter perguntado ou sem o cara ter feito nada pra ele. Tem até gente que vai às casas de música ao vivo toda semana pra ficar avaliando (falando mal, claro) os músicos que lá estao trabalhando. Eu mesmo cansei de estar tocando no palco numa boa e, de repente, sentir o clima pesando, um negócio estranho... adivinha o que era!?!?
Em primeiro lugar, se o cara tá ali trabalhando é porque tem gente que curte o som dele (se voce não curte é só ir embora). Quando não curtirem vao botar outros músicos no lugar, pode ter certeza. Segundo, se o cara é mesmo iniciante, ele precisa comecar de algum jeito e se ele ta dando os pulos dele pra comecar sem sacanear ninguém, deixa o cara trabalhar em paz, porra! Terceiro, se voce acha que toca melhor que ele ou que sua música é mais qualquer coisa que a dele, seria bom voce parar pra pensar porque será que voce está lá parado reclamando (sem ganhar nada pra isso) em vez de ter um lugar pra tocar nesse dia.
As desculpas para estar lá parado em vez de buscar fazer o seu trabalho são variadas. Uns reclamam que pra tocar em tal lugar tem que fazer parte de alguma panelinha, outros culpam o público (!) que só ouve música de má qualidade e tem até quem diga que hoje em dia é só botar um shortinho, tocar qualquer coisa e dar uns sorrisinhos que o público compra. O interessante é que em vez de construir o seu espaco e o seu público o cara posa de “o” grande conhecedor que, do alto da sua sapiencia, avalia a producao musical dos outros músicos e o gosto musical do pobre e ignorante público que os assiste. Enfim, um misto de arrogancia, ingenuidade e amadorismo.
Arrogancia, obviamente, por achar que o público tem que gostar daquilo que ele acha que “deveria” gostar e que o músico tem que tocar do jeito e o que ele acha que “deve”. Ingenuidade por achar que o fato de ele ficar jogando suas “avaliacoes” aos quatro ventos vai fazer com que as coisas melhorem pra ele ou que ele se torna ummelhor músico por isso. E amadorismo por nao perceber que existe público para praticamente todas as propostas de trabalho em música (se não há hoje um espaco pra trabalhar com sua proposta, esse espaco deve ser construído cuidadosamente) e que não há nenhuma área profissional em que voce trabalha só com o que quer. Se alguém pensa que a vida de músico é a busca pelas mais belas músicas e por ser um músico “perfeito” deveria botar os pés no chao, se quer realmente viver disso. Nunca vi um músico (que vive só de música, obviamente) que tenha tocado só o que quis durante toda a carreira e sem ter de participar de trabalhos que não eram os que mais lhe interessavam para sobreviver (como em qualquer outra profissao).
Não é a toa, portanto, que todos os “apontadores de bico” que eu já conheci (sem excessao) não pagavam suas contas (quando pagavam) do dinheiro ganho com música. Esse tipo de visao romantica que move os apontadores de bicos só é possível pela falta de conhecimento do campo, afinal, no campo da música, tocar “bem” (com aspas que um termo relativo como esse merece), é, chutando muito alto, 50% de todo o seu trabalho. O resto é fazer contatos, saber mante-los, tratar bem seus colegas e seu público (voce precisa deles, óbvio), divulgacao, boa dinamica de ensaio, saber manejar seus equipamentos, estudo, entre outras milhares de coisas que compoe o que é trabalhar com música (não confunda com “ser um músico perfeito”). Em outras palavras, quem toca razoavelmente bem para a sua proposta e sabe fazer bem essa outra parte necessária do trabalho de músico vai trabalhar sempre e merecidamente (para a tristeza dos apontadores de bico que passaram o tempo todo com um olhar míope em relacao ao ofício de músico) porque sabe manejar de maneira mais proveitosa o conjunto das habilidades necessárias ao ofício de músico e não só a técnica musical. Trabalhar com música não é um mundo de fantasia onde as casas são de chocolate, os rios de suco de uva e voce faz só o que quer preocupado apenas em ser “fiel à sua arte” e sim um campo de trabalho com prazos a cumprir, horários e muitas atividades que voce preferia não estar fazendo como qualquer outro.
Mas a maior trava geralmente está na cabeca do próprio músico quando acredita que realmente existe um modelo ideal de músico que todos devem seguir e perde noites de sono se culpando por não ter estudado tantas horas no dia ou não tocar como tal ou qual pessoa. O medo de ser “bico” (chamemos de bicofobia) faz muitos e muitos músicos se trancarem no quarto estundando por horas e horas tentando tirar músicas cada vez mais difíceis ou escalas cada vez mais rápidas pra mostrar no próximo show, jam ou roda de choro. Não tenho nada contra alguém querer aprimorar a sa técnica instrumental (quem não gosta de sentir que seus dedos respondem bem no seu próprio instrumento?). O problema é quando se toma a idéia de músico virtuosístico como modelo que todos devem seguir (independente da proposta) e se instaura um verdadeiro culto à complexidade e à dificuldade onde as músicas são sempre executadas buscando um espacinho pra mostrar quao rápido o cara pode tocar e às vezes num andamento muito mais rápido do que a música é comumente é tocada. Ao mesmo tempo, no campo da composicao, fica uma disputa pra ver quem “entorta” mais colocando um acorde mais cabuloso, uma modulacao mais inesperada, alguma convencao mais complicada a ponto de parecer feio mostrar composicoes com solucoes simples, mesmo que sejam usadas de maneira inteligente e coerente. Enfim, uma espécie de masturbacao coletiva que fala mais sobre as angústias dos músicos ali presentes do que propriamente de suas propostas musicais.
Felizmente, já não perco mais noites de sono com essas preocupacoes. Já perdi, e muitas, como qualquer um que entra no ramo. Aliás, quando entrei na faculdade de música, tinha um objetivo muito claro: ser um violonista tao bom quanto o Marco Pereira e viver de dar concertos por aí. Mas isso não era tudo o que eu queria.Também queria escrever tao bem quanto o Luis Fernando Veríssimo, saber tanto de História, Filosofia e Política, quanto o José Arbex Jr. entre outras coisas. O problema é que pra ser cada uma dessas coisas é preciso dedicacao e muito estudo sistemático. Para ser um violonista desse gabarito é necessário, chutando baixo quatro horas diárias de estudo do instrumento e eu segui perdendo o sono me culpando por não tocar como eu queria. Gracas à faculdade Música onde me graduei, aprendi que há muitas diferentes formas de ser músico e que a Música é um campo muito maior do que a performance em cima do palco, o que me permitiu, certo dia, admitir que não tenho saco pra ficar estudando instrumento todo dia e por tanto tempo. Admiro quem tem e desejo sucesso mas hoje a idéia de ser um instrumentista virtuose já não é tao mágica quanto era no comeco. Sinceramente não me acho menos músico do que o Marco Pereira só porque não toco nem um décimo do que ele toca violao. Me sinto menos músico que ele vendo toda a experiencia que ele carrega consigo de ter tocado com tanta gente, gravado milhoes de vezes, feito arranjos pra um bocado de gente, etc, assim como me sinto menos músico do que um Joao Gilberto, por exemplo, mesmo sabendo que eu faco coisas técnicamente bem mais difíceis ao violao que ele, no entanto, obviamente tenho muito menos experiencia que ele em muita coisa. O que há em comum entre violonistas tao tecnicamente diferentes como Marco Pereira e Joao Gilberto é que suas técnicas violonísticas são do tamanho exato de suas propostas musicais e as propostas são muito claras. Em outras palavras, a técnica desvencilhada de um sentido, uma proposta já não me chama mais a atencao.
Hoje toco meu violao e o meu cavaquinho honesto sem culpa. O que eu toco hoje é suficiente pra tocar com um número muito grande de propostas musicais (as muito virtuosísticas não) e sei que me defendo razoavelmente em rodas de choro, samba ou outros encontros de músicos (claro que muitas vezes eu sinto falta da técnica mais apurada mas não me culpo. Fiz a minha escolha). Volta e meia eu me pego tocando uma frase por tocar ou dificultando uma música sem nem saber porque e sem a música me ter sugerido isso mas aí paro pra me concentrar na música que está na minha cabeca e não deixar que meus dedos saiam querendo mostrar servico só pra mostrar. Se eu não conseguir tocar o que está na minha cabeca adapto ou escrevo pra outra pessoa com técnica mais apurada tocar. Não tem problema. O que eu não me permito mais é me deixar influenciar pela “bicofobia”. Estou em formacao, como qualquer músico, mas já tenho experiencias demais em música para cultivar esses traumas de principiantes.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Comentários sobre “o fim da cancao” ou pequeno guia pra comprender a MPB contemporanea.


Rafael R. da Silva



“O problema na música popular brasileira é que, a cada

vinte anos, o pessoal descobre que aconteceram coisas

muito bacanas a vinte anos atrás”.

Edgar Scandurra, guitarrista.


Para alguns, o título pode soar estranho. Porque a forma cancao teria terminado justamente agora em que o consumo musical, no Brasil, pelo menos, é constituído primordialmente por cancoes (mesmo considerando a monumental retomada de generos instrumentais como o choro entre os jovens brasileiros)? A teoria do fim da cancao é uma forma de ver a realidade da música popular muito comum nos meios acadêmicos. Na verdade, já não aguento mais ouvir e ler sobre isso e, para mim, isso sempre soou tao sem pé nem cabeca que nunca me animei a contra argumentar. Me animei agora, talvez porque desde que estou na Alemanha não ouco música brasileira o tempo todo e nem tem tanta gente comentando sobre, entao tenho estado mais livre pra retomar antigas cancoes que não ouco há muito tempo ao mesmo tempo que pensando muito sobre a producao atual. Enfim, digerir tudo o que sei e ouvi da música brasileira até entao.

A teoria do fim da cancao é, para mim, sem pé nem cabeca mas isso não quer dizer que não entendo como essa visao se constitui. Na verdade, quando ouco, me vem a cabeca os rostos daqueles que a defendem e não me espanto nem um pouco em perceber que, muitas vezes são os mesmos que sustentam outras teorias apocalípticas como o fim da arte, o fim da música e, no limite, o fim da história. Em linhas bem gerais e até simplistas (para me esquivar de retomar aqui a história da teoria), eu diria que a teoria é construída a partir de um sentimento de que “tudo o que podia ser inventado já foi inventado e agora tudo o que temos é repeticao do mesmo” ou até “nunca mais teremos um outro Chico Buarque, um Pixinguinha ou um Tom Jobim”.

Faco aqui um pequeno parenteses pra relatar um causo que me parece que tem avercom o debate pra retomar alinha de raciocinio mais adiante: Certa vez, numa escola em Porto Alegre onde lecionei na disciplina de música houve uma palestra sobre a nova geracao de adolescentes e sua relacao com o mundo digital. Dados muito interessantes mas que reforcam o que todos sabem, ou seja, que é uma geracao com grande familiaridade com os meios digitais e habituada à rapidez com que as informacoes nos são passadas nos dias de hoje. Muito interessante pra quem trabalha com esse púlico, como era o caso. O que me pareceu mais interessante, no entanto, foi ver como os professores de portugues e literatura puxaram o debate pro lado de se queixar de como os jovens tem lido pouco atualmente, que passam o dia no computador e que “no meu tempo não era assim”... Depois de mais de meia hora de debate me senti obrigado a intervir com uma pergunta. Me desculpei por estar me metendo num assunto que não é a minha área e disse que não entendia como se chegou à conclusao de que os jovens lêem pouco. Pra mim, disse, me parece que nunca os jovens leram tanto, haja visto o tempo que se envolvem com uma máquina (o computador) que basicamente possibilita atividades como chats, jogos e sites onde o fator leitura e escrita é simplesmente necessário. Vendo que os professores concordaram comigo, me senti livre para dizer que seria muita ingenuidade nossa, após tantos anos de luta dos professores para fazer os alunos lerem mais, achar que eles leriam do jeitinho que a gente quer, ou seja, sem adaptar o exercício da leitura e da escrita à sua realidade e às suas necessidades pessoais.

Seguindo o mesmo raciocinio, me parece de uma ingenuidade tremenda esperar que apareca um novo Chico Buarque ou outro Tom Jobim. Aliás, quem realmente se interessa por isso? Por que carecemos de outros que sigam o modelo desses sendo que já deixaram uma obra tao vasta e rica? Se todos compusessem como Chico Buarque a musica seria uma verdadeira chatice porque simplesmente não seriamos capazes de entender como as solucoes estéticas do Chico são particulares. Só entendemos a importancia de algo quando lidamos com coisas diferentes. Eu realmente sou fascinado pela obra do Chico (ou “dos Chicos”, considerando que sua obra sofreu severas mudancas ao longo da carreira) mas principalmente porque escuto milhares de coisas diferentes ao longo da semana que me permitem ouvir o Chico e perceber como sua obra é particular e isso não desqualifica os demais. Não quer dizer que o Chico é “melhor” que Luiz Gonzaga, que Arrigo Barnabé, que o Trio Mocotó, que os Mamonas Assassinas ou que a Ivete Sangalo. Só quer dizer que são coisas tao diferentes uma das outras que cada um nos pede um tipo de escuta, um tipo de postura diferente pra entender sua importancia no seu contexto.

Do mesmo modo, devemos ouvir a producao atual considerando que estamos falando de música popular brasileira, é claro, e portanto, considerando Donga, Noel Rosa, Ary Barroso, Joao Gilberto, os Novos Baianos, Tiao Carreiro e Pardinho, Elis Regina, as Velhas Guardas das escolas de samba, Jorge Ben, os Mutantes, o Premeditando o Breque, o Ultraje a Rigor, os Raimundos, Chico Science entre milhoes de coisas que constituiram o lugar que essas producoes ocupam hoje mas com cuidado para não ficar olhando fixamente para a mao de quem está apontando para algo diferente.

Um país que tem atuando agora e ao mesmo tempo Cordel do fogo encantado, Zeca Baleiro, Chico César, Monica Salmaso, Los Hermanos (e seus trabalhos individuais), Arthur de Faria e seu Conjunto, Giana Viscardi, Arnaldo Antunes, Totonho e os Cabra, Marcos Sacramento, Vanessa da Mata, Nacao Zumbi, Ana Carolina e Seu Jorge (para ficarmos no que a minha péssima memória permite agora) e reclama da falta de novidades na cancao nacional é o maior exemplo do que eu chamaria de reclamar de barriga cheia[i] (nota 1).

Mas ninguém desses caras canta como a Elis Regina, faz música como o Chico Buarque ou faz letras como Aldir Blanc ou Vinícius de Moraes, alguém pode contraargumentar, e com razao. O que não se pode fazer é julgá-los por isso, até porque, apesar de serem todos grandes conhecedores da música popular brasileira, ninguém ali está se propondo a imitar ninguém. Em outras palavras, se cada um deles tem a sua proposta e ninguém nunca declarou querer fazer algo parecido com o Chico, por que diabos nós os julgariamos como se eles quisessem competir com ele? O próprio Chico conhece profundamente as cancoes de Edu Lobo, Noel Rosa, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Tom Jobim e nunca se dispos a competir com esses caras. Nem faria sentido. Ninguém deixaria de ouvir esses caras só porque o Chico surgiu assim como ningué vai deixar de ouvir o Chico só porque existem os Los Hermanos. São coisas relacionadas mas imcomparáveis. Ouvir música não é um exercício de criar rankings ou de criar seitas fundamentalistas. Todo mundo tem seu espaco e ninguém precisa ir pra igreja se confessar pelo pecado de ter ouvido Totonho e os Cabra (e gostado) mesmo sendo grande fa do Chico.

Outro argumento que sempre aparece e que é o de que não há mais nada de novo a se fazer na música popular visto que todas as escalas, os modos, as cadencias e as modulacoes possíveis já foram feitas e por isso ninguém mais vai compor como o Pixinguinha, o Tom ou o Chico. O que muitos poucos se dao conta é que se formos levar esse argumento à risca, não existe nada de novo na música brasileira desde muito antes dela existir como a conhecemos. Esse argumento já foi repetido milhoes e milhoes de vezes na história da música ocidental (praticamente a única obcecada pela “evolucao” constante) e isso, provavelmente, desde Monteverdi. Desde entao vieram Bach, Beethoven, Wagner, Mahler, Bártok, Schoenberg, Webern e depois de cada um desses vinha alguém e dizia “Tá. Agora sim não tem mais o que inventar” e como, realmente, já não se enxergava outras possibilidades entre o dó, ré,mi, fá, sol, lá, si, comecaram atrabalhar com microtons, síntese sonora, escrever concertos com sons de máquinas de escrever, com o silencio... e a lista é grande. Durante a universidade cansei de ouvir que não havia mais o que inventar mas o mais interessante é que absolutamente nenhum desses que repetiam o argumento deixou de ouvir música por isso. Todos eles continuaram compondo, tocando ou ouvindo mesmo sabendo que aquilo já foi usado por alguem em algum momento. Por que nenhum desses que perdem o sono por não estar fazendo nada que já não tenha sido usado largou o ramo e foi viver de informática ou carpintaria? Ora, porque a música é muito mais do que uma corrida pra ver quem usa algo primeiro. Por que diabos alguém jogaria toda a obra do Tom Jobim, do Chico, do Dorival Caymmi e do Ary Barroso no lixo só porque todas as escalas, acordes e modulacoes ali presentes já foram usadas há, pelo menos, um século antes deles? Por acaso a sinfonia número 1 do Beethoven e a cancao “Milagre” do Caymmi são a mesma coisa visto que são baseados na mesma escala de dó maior?

Há que se comprender que música é muito mais que bolinhas na partitura, escalas ou tonalidades e que é um campo onde a lei “um peso e uma medida” não funciona. Gostamos de músicas que nos fazem lembrar de algo, que nos sugerem determinados sentimentos, que nos desafiam intelectualmente, que nos fazem sentir parte de um grupo, que nos dao uma vontade tremenda de dancar ou nos ajudam a manter o animo enquanto fazemos faxina, etc, etc, etc. Cada um em cada momento ouve música por algum motivo e se todo mundo que faz música estivesse preocupado em fazer coisas cada vez mais complexas para agradar os críticos certamente a música não seria tao presente em nosso cotidiano como é. Até porque desde quando complexidade é sinonimo de beleza ou de algo interessante? Quem me explica o porque a cancao “Cuitelinho” recolhida por Paulo Vanzolini no interior do Mato Grosso (nem se sabe quem compos) me toca tao profundamente apesar de ter apenas dois acordes numa simples escala maior?

Tirado o grande peso da culpa e do saudosismo das nossas costas, podemos curtir e perceber a riqueza da producao musical hoje no Brasil. Quem ainda não se deu conta da profunda chacoalhada que grandes letristas e cancioneiros como Zeca Baleiro, Chico César, Seu Jorge, Ana Carolina, Vanessa da Mata, Rodrigo Amarante, Marcelo Camelo e Arnaldo Antunes, excelentes cantores como Giana Viscardi, Monica Salmaso, Marcos Sacramento, Vanessa da Mata, Seu Jorge, Ana Carolina e de grupos que têm explorado texturas musicais extremamente inovadoras ou arranjos extremamente inteligentes como o Cordel do fogo encantado, Los Hermanos, Arthur de Faria e Totonho e os Cabra “precisa” urgentemente reformular o playlist sem, é claro, apagar o Chico, o Gil e o Tom do HD.



Notas:

[i] Isso para ficarmos dentro do campo da chamada cancao popular e, nela, deixando grandes nomes da antiga que continuam na ativa (como o próprio Chico, Joao Bosco e assim vai) e dentro do minimamente reconhecido pelo meio acadêmico e pela classe média. O funk carioca, o pagode e o axé, entre outros dotados de menos prestígio entre os intelectuais, também tem sua importancia mas essa é uma discussao maior da qual vou me esquivar por hora. A música instrumental popular brasileira não fica nem um pouco atrás. Podemos citar, novamente com o perdao da fraca memória, o Trio Curupira, Maurício Carrilho, Guinga, Humberto Araújo, André Mehmari, Orquestra Popular de Câmara além de tantos outros que já tem seu trabalho próprio (não só como instrumentistas) reconhecido há muito tempo e que continuam produzindo novidades como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e César Camargo Mariano.


Sugestoes de escutas da cancao brasileira contemporanea:








quinta-feira, 2 de julho de 2009

Guinga e a música americana - pensando alto sobre a música estadounidense e um pouco sobre Michael Jackson

Lá pelos idos de 1999, quando estudava no Conservatório de Música Popular Brasileira (CMPB) de Curitiba, o Guinga foi chamado para dar uma espécie de palestra no auditório do Conservatório, falando de sua carreira enquanto o mediador lhe fazia perguntas. Quando abriram espaço para a platéia fazer perguntas alguém, num tom fervoroso, lhe perguntou o que ele achava da mídia brasileira, visto que essa não abria o devido espaço para a música popular nacional que é a melhor música popular do mundo (palavras que ele usou). A platéia formada por professores e alunos do conservatório e, portanto, de pesquisadores da música brasileira, pareciam já saber a resposta do Guinga: certamente, iria se somar ao cânone dos defensores da MPB que dizem que um país que tem Tom Jobim, Pixinguinha, Radamés Gnattali, Chico Buarque, etc, tem que valorizar a sua produção que é de excelência... No entanto, Guinga se aproximou do microfone lentamente, como quem pensa se realmente deve dizer o que está pensando, e diz “olha, eu não acho que a melhor música popular do mundo seja a brasileira. Pra mim, a melhor música popular do mundo é a americana” (se referindo à música dos EUA). A platéia veio abaixo e foi necessário quase um minuto para que cessasse o burburinho que tomou conta do auditório. Não me lembro os argumentos que o Guinga usou naquela época para defender sua posição. Só sei que aquilo, aquela opinião jogada naquele contexto me marcou profundamente e, por um tempo, comecei a olhar o Guinga como um cara que não conhecia tanto a MPB como eu pensava (o que é provavelmente uma das afirmações mais falsas que se pode fazer) mas hoje, apesar de achar muito problemático tentar eleger a melhor música popular do mundo, acho que entendo o que o Guinga quis dizer.

Não dá pra desconsiderarmos o fato de que a indústria fonografia dos EUA (o país mais influente economica e politicamente do século XX e XXI, há que se considerar) é aquela que mais vende em escala global e que mais exerce influência (política) sobre o que se toca nas rádios ao longo do planeta. Por isso, podemos dizer que suas estratégias de vendas são minimamente bem-sucedidas mas não podemos esquecer que mesmo a melhor estratégia de marketing do mundo é incapaz de fazer uma venda razoável de gelo para esquimós. Nós compramos aquilo que nos serve, que nos faz sentido, que nos mobiliza de alguma forma (apesar dos protestos dos que defendem que o consumidor é mais alienado que uma pedra). Nesse sentido, não há como negar que a indústria do entretenimento estadounidense é extremamente madura e articulada, principalmente se considerarmos empresas como a Sony e a Warner que atuam nas mais diferentes mídias como a TV, o cinema, música, etc.

Desde o início daquilo que entendemos hoje como mercado de entretenimento, a partir do advento do gramofone e do cinema, é espantoso constatar a habilidade que o país teve em formar performers. Utilizo o termo performer porque em se tratando dos artistas norte-americanos, principalmente a partir do cinema falado e a conseqüente projeção dos musicais, os termos ator, dançarino e cantor não dão conta de descrever artistas como Fred Astaire, Frank Sinatra, Marilyn Monroe, Elvis Presley, pra ficarmos com muito poucos exemplos. Ainda hoje essa característica se impõe ao observarmos Michael Jackson, Madona, Jenifer Lopes, Britney Spears ou mesmo produções como High School Musical onde o elemento música está tão articulado com a dança e a interpretação a ponto de não sabermos mais eleger o que é o principal. A indústria de entretenimento americana foi e ainda é, em grande parte, muito bem sucedida em fazer com que seus artistas circulem pelas mais diferentes mídias como o disco, o filme, artigos para colecionadores, etc.

(É verdade também que essa era uma tendência global nas primeiras décadas do cinema falado. Artistas tupiniquins como Grande Otelo, Carmem Mitanda, entre outros também tiveram muitas oportunidades de demonstrarem seu potencial como performers (principalmente nos tempos da Atlântida) mas imagine só se um cantor como Orlando Silva e Cauby Peixoto que simplesmente arrastavam multidões ao longo do país teriam sido tão pouco explorados pelo cinema se estivessem amparados por uma indústria do porte da norte-americana. Hoje no Brasil, o que pode ser comparado aos performers norte-americanos são as cantoras baianas como Ivete Sangalo, Margarete Menezes, entre outras)


Não bastasse seu evidente sucesso em promover os artistas e fazer com que seus nomes tornem-se verdadeiras marcas que agregam valor a qualquer evento que participem (desde uma festa até uma temporada de espetáculos ou um filme), a indústria fonográfica daquele país, consciente de que não se vende qualquer coisa a qualquer um (se você discorda, pega uma caneta e compõe um sucesso aí), criou verdadeiros centros de produção de canções. Esses eram formados por grandes compositores como Cole Porter, Gershwin, entre outros, (ligados às mais importantes gravadoras da época) que eram simplesmente responsáveis por preencher os Top Hits nacionais. Não sou um profundo conhecedor do Great American Songbook (ou GAS, uma espécie de compilação das canções mais conhecidas) mas, do que conheço, me impressiona o quanto as partes da música (forma, em termos técnicos) são muito bem definidas (número de compassos, relações de oposição, etc) e como tendem a sugerir um crescendo a partir de motivos melódicos pouco marcantes num desenvolvimento coerente (muitas vezes passando por uma espécie de ponte que ou faz oposição ao primeiro tema ou é a novidade que mantém a atenção do ouvinte após muitas repetições) até um refrão muito marcante, quando há (ver Man in the mirror com Michael Jackson, Dream a little dream of me com The mamas and the papas, New York, New York com Frank Sinatra). Em outros casos, canções estruturalmente pouco marcantes se mostram simplesmente arrebatadoras por força da interpretação extremamente inteligente de grandes performers e da maturidade dos arranjadores e instrumentistas (ver You are so beaultiful de Joe Cocker, Hot Pants (I’m Coming, I’m coming) de Bobby Bird). Em outras palavras, me parece que existe uma forma canção muito característica. Uma espécie de clichê suficientemente amplo a ponto de não fazer com que as músicas soem semelhantes e restrito o suficiente para manter coerência.

É evidente que tudo o que digo acima é extremamente questionável. Trabalhar com generalizações é sempre muito controverso (tem muita coisa diferente dentro desse balaio que chamei de música popular dos EUA) e é óbvio que é a leitura de um cara que desde criança convive com a música americana (ou do que chegou dela até mim) falando de manifestações da cultura popular do ocidente cristão, entre outros problemas mas o que pretendo demonstrar é que os EUA se mostrou um terreno extremamente fértil para promover e gerar grandes compositores e, sobretudo, performers (graças também à forte tradição ligada ao canto, como se manifesta no grande número de grupos vocais, corais gospel, barbershop, etc). E isso é muito diferente de dizer que não há grandes performers em todos os cantos do planeta ou que os demais não tem capacidade para tanto. Só quer dizer que lá haviam questões culturais, políticas e econômicas que favoreceram a formação e promoção de um número muito grande de performers, como não vejo em outras culturas do cenário pop.

Michael Jackson e a cultura pop americana

A noção de performer na cultura pop norte americana tal como apresentada aqui (entendida como um artista que não se limita a cantar ou tocar um instrumento, ou dançar, ou atuar, ou saber promover sua imagem, etc) se levada ao limite podemos chamar de Michael Jackson. Atuando com seus irmãos no grupo Jackson Five desde os cinco anos de idade, aos dez já conhecia praticamente todos os passos de James Brown e cantava de maneira espantosa, como podemos ver (ouvir, nem tanto) no vídeo abaixo que registra o teste que os Jackson Five fizeram para gravar na Motown em 1968;